Senso Incomum

Equívocos sobre a "cultura de precedentes" à brasileira: novo round

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8 de dezembro de 2022, 8h00

1. O contexto, as reportagens da ConJur e o simpósio
ConJur publicou duas reportagem sobre o tema Precedentes há poucos dias. Houve um simpósio em Brasília sobre a temática: ver aqui e aqui. Eis as manchetes da ConJur:

Spacca
"Explosão de reclamações ao STF é sintoma do desrespeito à cultura de precedentes" e
"Teses firmadas em HC são desafio à cultura de precedentes na seara penal".

É difícil discutir esse assunto, que possui o monopólio de alguns juristas e dos próprios tribunais. Os tribunais teimam em não ouvir os que pensam diferentemente. Ou você é favor da tal "cultura dos precedentes" ou você está fora da discussão.

2. A academia importa? Os tribunais querem ouvir a academia?
Não importa que haja um conjunto considerável de juristas (professores e doutrinadores) que discordam do STJ e do STJ sobre o tema "precedentes". Os tribunais agem mais ou menos como o governo em face de uma barragem que está quase concluída e descobre que há algumas espécies de peixes e crustáceos que serão extintas. Inexoravelmente. Só que a barragem custou bilhões. Como voltar atrás e reconhecer que não se deram conta dos bichos passíveis de extinção?

No Brasil a academia tem de implorar para que os tribunais ouçam seus pesquisadores.

De todo modo, mais uma vez, vai aqui minha contribuição, que representa um percentual de pesquisadores que pensam parecido e que discordam do STJ e do STF nessa temática. Invocando o princípio da caridade epistemológica (por todos, Blackburn e Davidson).

3. O cerne da discussão ignorada: o que é isto — o precedente?
As manchetes da ConJur são assustadoras. O que fazer? Por que os "precedentes" não são obedecidos? (aqui há dois textos meus para responder a essa pergunta: este e este). E, agora, pior, a nova polêmica é: essa "cultura" pode ou deve ser estendida ao habeas corpus?

"O estabelecimento de uma cultura de precedentes inaugurada pela reforma do Judiciário de 2004, e imposta pelo Código de Processo Civil de 2015, ainda é um dever não cumprido pelos tribunais e magistrados brasileiros."

Cultura de precedentes? O que seria isso? Uma "cultura" é algo que se estabelece ad hoc, com uma importação pela metade simplesmente imposta numa espécie de marco zero? Cultura que não é orgânica é um paradoxo. Contradição em termos.

"Cultura de precedentes" estaria estabelecida porque o CPC (artigo 927) diz que os tribunais observarão… e segue um elenco. E porque temos súmulas vinculantes, teses criadas para o futuro. Ora, é evidente que decisões de tribunais devem ser observadas-seguidas. Até porque existe o artigo 926.

O problema é: de que modo. E esse é o busílis.

Falar em "cultura de precedentes" diante disso é — peço um milhão de desculpas epistêmicas — um desconhecimento do que seja stare decisis, historicamente desenvolvido ao longo de séculos na teoria clássica do common law, consolidado pela prática e construído à luz da própria ideia de uma constituição histórica. Alguém dirá: mas aqui é civil law. Exatamente. Eu não inventei "isso que chamam de precedentalismo". Estou jogando de acordo com as regras postas. Quem fala em cultura de precedentes é o STJ, o STF e parte da doutrina.

Para ser mais claro: nem no civil law é assim: essa discussão nem se põe. No common law seria paradoxal: a própria palavra "precedente" já indica e pressupõe que não é prospectivo, que não nasce como tese "para vincular" no futuro. Não é teleológico. Ou seja: no civil law não tem, no common law não é assim. O único paralelo — de longe — seria o instituto dos assentos portugueses… que foram destruídos epistemologicamente por Castanheira Neves e declarados inconstitucionais!

Resumindo: o único paralelo no mundo era inconstitucional, incompatível com o civil law. No resto da tradição continental, não há. E no common law não é assim. Eis que volto à pergunta. Com toda lhaneza: cultura de precedentes? Qual? Esse é o ponto. E há que se tocar nessa ferida narcísico-epistêmica da comunidade jurídica. Pelo bem do debate.

Vou deixar claro sem qualquer margem de erro, como em um acordo semântico: No sistema common law, o precedente é uma concreta decisão jurisprudencial, vinculada como tal ao caso historicamente concreto que decidiu e que se toma como padrão normativo casuístico em decisões análogas ou para casos de aplicação concretamente analógica. É de particular a particular, e não do geral (a norma) ao particular (o caso)!

4. Precedentes não são feitos para o futuro. Por isso, teses não são precedentes
Nenhum precedente nasce precedente, é sempre uma leitura retrospectiva — essa questão explico já na minha tese de doutorado de 1995. Por maiores que sejam as pretensões dos tribunais, nenhum deles consegue prever as hipóteses de aplicação de um suposto princípio subjacente a uma decisão, mesmo àquelas que alteram entendimentos jurisprudências. Não porque seja questão discricionária, como quer o positivismo. Nenhuma mudança de jurisprudência dispensa a tal exigência de adequabilidade, como exigia Dworkin, num contexto de maior integridade do Direito: a força "gravitacional" é testada a cada caso concreto!

Portanto, que "cultura de precedentes" é essa que temos no Brasil? Quero dizer que o tal "boom de reclamações" não é sintoma de desrespeito a uma cultura. Não. Pelo contrário. É a prova cabal de que não existe tal cultura. Porque cultura não se impõe. Assim como não se impõe um precedente.

Cultura que não é orgânica e precedente que é prospectivo. É mesmo o país dos paradoxos.

A raiz disso tudo tenho apontado de há muito e pouquíssima gente quer saber: ainda nem sabemos o que é um precedente e o que vincula num precedente. E queremos falar em "sistema de precedentes". Em "cultura de precedentes" …!

Já falei e refalei sobre isso. Já escrevi colunas, artigos Qualis. Até livro já escrevi. Já na quarta edição. Pediria uma discussão sobre o que escrevi. Falo no livro de dezenas de outros pensadores juristas que concordam comigo.

Porém, parece que tudo é pra nada. Que não fosse meus textos, então. Mas que pelo menos, se quiserem falar em "precedentes", que explicassem o que é um precedente. Como funciona, por que funciona, como se identifica aquilo que vincula um precedente numa decisão judicial.

Porque teses não são precedentes. Súmulas não são precedentes. Um precedente não nasce precedente. Nem uma cultura.

Peço desculpas pela contundência. Mas bater tanto em uma tecla e ouvir sempre a mesma coisa cansa, não é fácil.

5. A questão da extensão das teses ao HC
A opinião dominante que se viu no simpósio sobre o tema erra acertando, e acerta errando. Acerta no erro, erra no acerto.

Explico: habeas corpus, quando constitucionalmente adequados, geram precedente — isto é, geram um pronunciamento da Corte Suprema sobre um caso concreto, um pronunciamento que é fundamentado e do qual se pode extrair, futuramente, pelos tribunais seguintes, uma razão de decidir. Esta razão de decidir, quando constitucionalmente adequada, cria um padrão a ser observado pelos tribunais subsequentes.

Mas isso é pelo raciocínio que deveria guiar o pensamento sobre precedentes no Brasil. Na prática, habeas corpus acabam não gerando "precedente" nesse sentido nosso aqui (precedentalismo brasileiro), sem uma epistemologia adequada sobre o assunto e sem teoria do direito. Porque o Supremo não faz teses a partir de habeas corpus. E aqui o que se considera "precedente" são teses abstratas criadas pro futuro.

Eis, portanto, o paradoxo ou paroxismo: uma correta decisão em sede de HC deveria SEMPRE ter força de precedente — no sentido correto de precedente, a ser observado e distinguido ou ter seu padrão decisório seguido (quando constitucionalmente adequado) por tribunais subsequentes.

Mas o HC não tem força de "precedente" brasileiro porque, aqui, "precedentes" são tratados como as teses gerais e abstratas jurisprudencialmente postas. Eis por que adapto o conceito de positivismo jurisprudencialista. Mas qual é o busílis? Precedentes não são teses. Esse é o paradoxo da falta de uma cultura de precedentes, que, com as devidas adaptações, vai servir para qualquer ramo do direito. Inclusive o direito penal.

Ora, toda e qualquer decisão paradigmática da Suprema Corte (até mesmo em embargos ou agravo) é passível de se tornar precedente: é o pronunciamento oficial da leitura do órgão máximo do país sobre interpretação constitucional em determinada matéria. Simples assim. Funciona assim no mundo todo.

Precedentes não são feitos para o futuro. Não têm certidão de nascimento. A "doutrina Brady" não nasceu "doutrina Brady" como tese abstrata. Foi uma decisão da Suprema Corte dos EUA sobre um caso concreto que lhes chegou submetido. E virou "doutrina" porque, paradigmática, passou a ser subsequentemente aplicada (ou distinguida — e isso já mostra que precedentes não são teses; como se faz distinguishing de tese abstrata?) pelos tribunais posteriores. A partir de seus fundamentos.

O problema em se estabelecer uma cultura de precedentes não está nesta ou naquela área, não está no fato de ser habeas ou ADC ou o que for. O problema de se criar essa cultura é que, no Brasil, até agora, não se enfrentou o problema sobre o que é um precedente. Sobre como decisões vinculam. Sobre como precedentes não nascem precedentes, não são pro futuro e abstratos.

É um problema de epistemologia e de teoria do direito, não de desenho institucional. Como falar em "cultura de precedentes" que não "pega" se nem a exigência de fundamentar as decisões "pega"? Se nem a retirada do "livre" do Código impede que juízes decidam com base em "livre convencimento"? Esse é o ponto. Mas aí já é outra discussão.

Para que não fujamos do assunto. E para que chamemos as coisas pelos seus nomes. Honestamente? STF e STJ compraram a tese errada. Precedentalistas venderam uma ideia de teses gerais tribunalícias sob o nome de precedentes. Falo isso amiúde em meu "Precedentes Judiciais e Hermenêuticas".

Numa palavra: o que é isto — o precedente? Sem essa resposta, jamais será criada cultura alguma.

Peço desculpas de novo pela contundência. Castanheira Neves, meu prezado Amigo, batalhou anos e anos para tentar demonstrar à comunidade jurídica portuguesa, e aos seus tribunais, que os assentos eram uma espécie de repristinação vulgateada do velho conceptualismo. Ele venceu a luta muitos anos depois. Escreveu dois livros sobre o tema e muitos artigos.

Não me importo com o tempo. Queria apenas que os tribunais nos ouvissem. A mim e a tantos juristas como — e corro o risco do esquecimento — Marcelo Cattoni, Tomás Bustamante, Diogo Bacha, Juraci Mourão Lopes Filho, Emilio Vianna, que fez um trocadilho em sua excelente tese: "Quem vê tese, não vê precedente", Alexandre Sá, Rafael Tomas de Oliveira, André Karam Trindade, Guilherme Pupe, Georges Abboud, Igor Raatz, Ziel Ferreira Lopes, Gilberto Morbach, Dierle Nunes, Flávio Pedron, Alexandre Bahia, Francisco Borges Motta, Mauricio Ramires, Marcelo Elias Naschenweng, Walber Carneiro, Márcio Berti, Jacinto Miranda Coutinho, entre outros (não vou citar os estrangeiros que estão citados em meu livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica) que não concordam com a citada "cultura dos precedentes". E que não pensam que precedentes são feitos para o futuro.

E que não fossem, ao menos eles, excluídos da discussão.

Não fechemos a barragem. Salvemos as espécies, pois.

Post scriptum 1: Il precedente imposissible
Em verdade, acredito que a grande maioria dos autores que escrevem sobre precedentes pensam parecido comigo. Claro que há variações, mas a maioria defende que teses, súmulas e súmulas não são precedentes. Acredito que mais firmemente, apenas Marinoni e Daniel Mitidieiro (há vários textos meus sobre isso — inclusive um link no inicio desta coluna) tentam subscrever esse entendimento adotado pelos tribunais superiores.

Há processualistas que, ainda com divergências pontuais, discordam do precedentalismo adotado pelo STJ e STF, como Lucas Buril e Ravi Peixoto. Fredie Didier também não reduz precedente a tese. Eles focam mais no aspecto processual, mas não caem na crença de que possa haver essa ordenação "de cima para baixo".

Na Itália, meu amigo Juraci Mourão testemunhou debate similar. O saudoso Michele Taruffo resistia na Itália à redução dos precedentes às massime (algo parecido com nossas súmulas) e fez uma resenha do livro de Juraci na Revista Trimestral de Direito de lá, justamente mostrando a correta resistência a esse precedentalismo, o que fez o livro ser citado por Lucca Passanante em seu Il precedente impossible. Enfim, há realmente um embate entre academia que enxergam uma função mais profunda dos precedentes e tribunais e seus defensores de uma função mais de gestão por precedentes.

Post scriptum 2: em termos teóricos, o mais grave:
A tese precedentalista assumida pelo STJ e STF tem um problema ainda maior: o realismo jurídico à brasileira. Um positivismo jurisprudencialista. Explico: os tribunais põem o direito (positivismo na origem é "eu ponho" — tese das fontes sociais). Por ato de vontade (segundo aconselham os doutrinadores precedentalista). Ato de vontade quer dizer "ponho como penso que deve", independentemente com qualquer fonte anterior (
autorictas non veristas). E aí vem a segunda parte: uma vez posto (criado) o novo direito por meio de uma tese (chamada de precedente), os tribunais querem que o restante do sistema seja textualista (outra forma de positivismo primitivo).

Quando o "textualismo" não "pega", vem a queixa: a cultura de precedentes não vinga. Claro. E como vingaria?

O mundo e a teoria do direito estariam contra o Brasil? Contra o STJ e o STF?

Portanto, invocando de novo Blackburn, precisamos falar sobre essa temática. O direito não cabe nos estreitos limites do STJ e o STF. Ou fechemos as academias.

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